Já quando estávamos a ponto de nos despedir em nosso último encontro, em novembro, perguntei a José Mujica quem era, afinal, sua grande referência política, de todas aquelas que o tinham guiado.
Ele respondeu, sem hesitar, encurtando o nome como fazem os que falam de alguém íntimo: “Batlle”, assim, curtinho. O ex-mandatário referia-se a José Batlle y Ordóñez (1856–1929), alguém que deveria estar nos manuais escolares brasileiros, caso não fôssemos tão omissos em relação à nossa história regional.
Mujica olhou para mim e resumiu apenas um de seus feitos: “Imagine baixar uma lei em que se proíbe escrever deus com letra maiúscula, nos livros, nas escolas, nas igrejas —e isso naquela época”, disse Mujica, que sempre defendeu o Estado laico e era ateu.
Não era um exemplo a mais. Era a demonstração de um líder que queria, de fato, melhorar seu país, tornando-o mais igualitário —não apenas em termos étnicos e de classe, mas também do ponto de vista religioso.
Em seus mandatos, de 1903 a 1907 e de 1911 a 1915, Batlle y Ordóñez aprovou o divórcio apenas pela vontade da mulher, promoveu uma reforma para regularizar a jornada de oito horas de trabalho —na cidade e no campo— e era a favor da eutanásia. Criou as indenizações por demissão e por acidentes, fundou o Banco República e regularizou o sistema de previdência. Estabeleceu uma malha pública de educação secundária que tirou das mãos da igreja o monopólio do saber.
Preocupado com a qualidade da aguardente barata que afetava a saúde dos uruguaios, no fim dos anos 1920, ordenou que a Ancap —estatal dedicada a administrar o monopólio do álcool — fabricasse bebidas alcoólicas baratas, mas de melhor qualidade, com efeitos menos nocivos. Quem soubesse que essa havia sido a inspiração para a famosa Lei da Maconha acertaria. Até a legislação de 2013, o Uruguai recebia uma maconha de má qualidade vinda do Paraguai — e, com ela, suas gangues de narcotraficantes. Ao regularizar a produção por produtores nacionais, pôs uma barreira ao narcotráfico e permitiu que milhares consumissem a droga de forma barata e com segurança.
Batlle e seu continuador, Mujica, reformaram, secularizaram e civilizaram o país, que hoje ostenta os primeiros lugares de alfabetização e de satisfação com a democracia nos rankings internacionais.
Batlle criou as regras para um Estado social. Mujica seguiu sua obra e, diferentemente de alguns líderes personalistas latino-americanos que quiseram ou querem continuar no poder, retirou-se ao fim de seu mandato. Como manda a lei, fez algo que nenhum dos ex-mandatários populistas ou hiperpersonalistas locais quis fazer: criou um sucessor, o atual presidente Yamandú Orsi.
Por isso, não está metido numa novela sucessória intrincada como a Bolívia de Evo Morales nem deixou o país sem opções de continuidade, como faz o próprio Lula no Brasil.
Mujica trilhou esse caminho. Sua presidência (2010–2015) ficou internacionalmente conhecida por legalizar o aborto (até a 14ª semana) e o casamento igualitário. Mas ampliar esses direitos civis não era apenas marcar uma agenda “woke” —era promover inclusão.
Mujica o fez também a partir de seus exemplos de sobriedade. “Vivo como vive a maioria do povo uruguaio.”
Num continente marcado por homens que querem permanecer no poder ou deixar herdeiros eternos, Mujica encerrou seu mandato com o coração tranquilo. Batlle e ele —tão diferentes em origem, mas tão próximos em ética— entenderam que o poder só vale se for usado para abrir caminhos, não para ocupá-los indefinidamente.
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