Meu pai morreu há uns dias, e me questiono o que é o processo do luto em uma sociedade automatizada. É uma dúvida que ainda não tinha me ocorrido, mesmo sabendo que quase inexistem rituais de morrer em casa. O coração deixa de bater em uma cama de hospital e, no dia seguinte, bem, o corpo já foi cremado.
Sentir uma exaustão profunda depois da morte de uma pessoa muito íntima ou chorar em um estado de confusão total ao cruzar o olhar com um desconhecido na rua, sem saber o porquê da comoção, parece não ter coerência alguma. No entanto, é o que tem feito sentido para mim. Mas, em universo de zumbis, onde apenas se segue em frente e as dores supostamente se dissipam na rapidez de um pôr-do-sol, não há espaço para a experiência da tristeza prolongada.
Quando menciono zumbis, penso então em vampiros e não quero arrastar o leitor para o simplismo do terror, onde a perda de alguém tem acordes de Halloween, mas porque são duas figuras lendárias ligadas à nossa fantasia da morte. Enquanto o vampiro cansou de viver, o zumbi só segue adiante e, se tivesse alguma consciência, vivenciaria a castração de assumir a própria finitude.
Meu pai absorvia o mundo dentro de sua alcova e não queria mais viver. Não mantinha um comportamento sempre otimista —e não critico os que o fazem, talvez eu seja uma dessas pessoas—, além de desconfiar de médicos, padres, professores e de respostas prontas. Não andava por andar nem falava por falar. Era um homem sedutor, culto, mas atormentado em suas questões profundas, difíceis e geralmente mal resolvidas. Em seus 74 anos, viveu séculos.
O que me surpreendeu foi que, nos últimos meses, passou a alimentar-se praticamente de sucos de caixinha, em um desvio inédito da boa culinária que apreciava tanto. E para ele não havia nada mais vulgar e descartável que um suco de caixinha. A autofagia à qual se impôs era degradante. Preferia sangue novo, mas não quis ou não soube se reinventar.
Não consigo imaginar a aflição que é seguir vivendo quando não se quer mais. Daí considero um vampiro puro-sangue, de uma longa linhagem. Assistiu a cortejos da Inquisição, discutiu com Pero Vaz de Caminha a primeira visão do Brasil, foi amante de Maria Antonieta, com o pescoço mais alvo da história, viu o homem chegar à Lua em uma TV preto e branco.
O vampiro sempre foi um erudito, mesmo que os fatos históricos gradualmente deixaram de lhe interessar. Seu sentido de aventura não está nos tempos modernos. E dizem que se aposentou em um flat em São Paulo. Nome e sobrenome: Conde. Quer o anonimato e diverte-se que o confundam com um vigarista com pretensões de nobreza.
Este meu Conde, que não é meu pai, estendeu-se até a cômoda e atendeu o telefone. Era sua amante que fazia cem anos. Disse que não queria cancelar o aniversário à luz de velas apesar de não se sentir bem. Pressentia que morreria essa noite. “Só vou partir porque ainda não descobriram a pílula para a eternidade. Sentirei saudades.”
“A impotência é um mal dos nossos tempos”, riu ele, aproveitando para declinar com simpatia o último desejo da amante. Não conseguir estender a vida, como queria ela, era uma bobagem. E ao contrário da voz carinhosa que lhe falava, Conde não queria mais permanecer neste mundo.
Lembrou do ridículo de ter sido parcialmente decapitado ou da tentativa da evisceração do próprio coração. Esses Van Helsing não passavam de uns amadores porque, no fundo, temiam a morte.
Como a autocrítica não o matava, Conde decidiu adotar práticas de zumbis. Resmungar sem se comunicar, fazer algo por fazer, chegar lá. O pior é que passou a gostar mesmo dessa tralha. Adquirira recentemente uma úlcera, por causa da ingestão incessante de sucos de caixinha. Como meu pai. Igualzinho.
Conde foi além. Abraçou o consumismo. Comprou uma coleção de óculos escuros para passear à noite e tentou se viciar em antidepressivos. O único que desgostava era ter que conviver com criaturas mortas-vivas que se achavam “up-to-date” em seus tratamentos “anti-age”, zombando do óbito —”óbito”, essa era a palavra que usavam. Conde também adotou palavras em inglês que entravam como picadinho de carne nas frases.
Passou a frequentar a academia de ginástica e exercitava o sorriso constante. Tornou-se assistente de gurus da longevidade, mas não resistiu e roubou amostras de sangue dos seus discípulos. Quando foi pego no clã de Bryan Johnson, um dos grandes charlatões que pregam a eternidade, em Los Angeles, defendeu-se. Ele também fazia testes para a própria conservação. Foi expulso.
Já em São Paulo, Conde chegou a contratar um matador de aluguel, mas o sicário fez um colar com as balas de prata e atirou em suas costas de qualquer jeito. O vampiro, obviamente, sobreviveu. Penso em meu pai. Brincalhão, ele teria adorado contar um exagero desses sobres si mesmo, ao estilo do Barão de Münchhausen.
Na missa do sétimo dia da sua amante de cem anos, Conde fez o sinal da cruz e teve quem jurou que o viu beber água benta. Ele, com seu olhar melancólico, disse para o pequeno grupo que aqueles modos eram de cristãos, nada que ver com vampiros de verdade. Encararam desconcertados aquela figura pálida sem nenhuma ruga, e alguém quis saber qual era o segredo de sua longevidade.
Conde alçou um dedo. “Não tornar a tristeza patológica, mesmo que eu lute contra isso há séculos. E evitar a luz do sol.”
“Ah, isso mata mesmo!”, disse uma moça, mostrando um protetor solar em sua bolsa.
“E a falta de elegância e a indolência artística”, disse Conde.
“Algo mais?”, perguntou um senhor com chapéu de feltro. “Talvez tenha que aprimorar seus programas culturais. Um cabaré, talvez? Pena que não tenhamos mais a Patricio Bisso”, adicionou.
Fizeram uma meia hora ali e concluíram que a senhorinha tinha vivido muito bem porque chegou aos cem anos. E ainda com um amante durão daqueles. Uma cifra não determina uma boa vida, pensou Conde, indiferente ao povo dos números redondos. “Só os amantes sobrevivem”, pronunciou ele, e as pessoas ali sentiram o chão tremer.
“Cumprir um centenário é chique”, disse o entusiasta dos cabarés.
A moça do protetor solar, meio sem saber como concluir, completou com um “só o amor salva”. Em seguida o encarou com interesse. Conde viu em seus olhos a morte censurada destes dias —era como o sexo em tempos vitorianos. Daí o medo ao charme dos vampiros, ao erotismo que causava arrepio. O destino da espécie havia desaparecido, pelo menos em sua percepção, pensou.
Chegando ao flat, deu a volta no relógio de areia e espiou a espada de prata no canto da sala. Fez um café forte porque já tinha escurecido e decidiu dar uma volta. Viu da janela alguém fazendo um tchauzinho. De duas, uma: o aceno se devia ao seu poder magnético ou ao seu fracasso existencial. Mas monstro ele nunca foi. Esses eram os malditos acéfalos que o cercavam, pensou, os que se recusavam a sentir a dor natural da vida.
Tomou seu antidepressivo e antioxidante com dois goles de suco. Fez um sinal desde a janela, já desceria. Queria conversar. Queria sangue novo. Na escuridão, pôs seus óculos de sol, uma jaqueta de couro preta e saltitou os degraus para baixo. Sem sorrir, direcionou-se para a mulher parada na esquina. “Boa noite.”
Ela se aproximou, um pouco trêmula, sentindo uma atração estranha por aquele homem e mencionou que vivenciava uma dor profunda que lhe corroía, de uma perda que não conseguia definir. “Sabe, moço, é que tá doendo aqui dentro mesmo. Mas eu não costumo falar com estranhos.”
“Nem eu”, disse ele, devagar, convencido de que sua letargia teatral ainda era atraente. Caminharam juntos, de braços dados, como se se conhecessem por muitas vidas, dobrando a esquina.