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Os pregadores de roupa que incluí no meu espólio – 29/04/2025 – Bia Braune

“Herança é esse conjunto aí de bens, direitos e obrigações que alguém deixa para os sucessores. Precisa, portanto, ser declarado. E você tem só até o dia 30, tá?”, pressionou-me a advogada. “Vê se não atrasa!”

Um pouco forte, me chamar de “atrasada”. Sei que me perco em devaneios anacrônicos, a cabeça metida em épocas que não o agora, com suas demandas inadiáveis para ontem. Mas fazer Imposto de Renda não é só isso? Anexar arquivos, catar antigas certidões, abrir uma planilha e decidir se prefiro a opção completa ou simplificada? Bem, a esta altura da vida, todos nós sabemos que nada é tão simplificado assim.

Ainda mais num contexto de partilha, quando por entre caixas, pastas de elástico e toda sorte de cheiros de guardado surge um punhado de velhos pregadores de roupa. “Isso lá é tributável?”, perguntou meu irmão. Dos filhos, o mais prático. Ocupado que estava entre recibos de IPTU, ITD e ITBI, de pronto não percebeu as lágrimas que me escorriam dos olhos. “É rinite? Tem antialérgico ali no banheiro, se precisar de um SOS.”

Eu precisava era me recompor, de tão enxaguada pela memória daqueles objetos de madeira já escurecidos, quase podres. Com bolinhas e flores pintadas a mão, agora quase apagadas. Há quantos anos não os via pendendo de todos os nossos varais?

Eram decorados pelas mulheres da casa. Segundo elas, o método mais fácil para separar que peça pertencia a quem, posto que minha avó, minha mãe, minhas tias, todas seguiam a tradição da roupa suja lavada em família.

Quando moças tinham bem mais trabalho, pois eram do tempo da anágua e da combinação. “Sua bisavó era tão velha que só rodopiava com crinolina por baixo da saia”, contavam, durante enérgicas esfregações. “Não havia poliéster!” E eu ali, miúda mas boa ouvinte, assistindo também a cueiros e camisinhas de pagão sacudidos pelo vento.

Eram relatos de latas d’água que vinham do rio e de roupas alvejadas pelo mais retinto tom de azul. “Anil, minha filha, só não tira mancha é da consciência!” —e gargalhavam, sussurrando sobre menarcas, perfumes entranhados em camisas e nódoas em vestidos que foram passear longe dos maridos. A sensação de um ou mais segredos que acabaram de ser tirados da gaveta e postos para quarar, junto com aqueles pregadores.

Alinhados e emoldurados num quadrinho, viraram meu espólio. Ganharam nova vida sob o sol. E quando alguém indaga sua história, às vezes dou apenas uma desculpa esfarrapada. Certas rendas permanecerão indeclaráveis.


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