Como o leitorado deste blog sabe, sou profundamente favorável à releitura anual de certos livros espetaculares, e um deles certamente é “Gilead”, da premiada romancista americana Marilynne Robinson. (Não, não tem nada a ver com “O Conto da Aia”; a Gilead do título de Robinson é uma cidade normalíssima dos EUA dos anos 1950, sem nenhum tipo de poligamia fascista cristã, graças a Deus). Vale a pena procurar o livro, que tem uma edição brasileira relativamente recente, de 2022, pela Edições Vida Nova.
Existe uma pletora de motivos pelos quais a releitura do romance é uma experiência riquíssima, mas talvez uma das razões mais intrigantes é que o livro recupera um dado histórico facílimo de esquecer com a chegada da Era Trump: o Meio-Oeste, “miolão” geográfico dos EUA, já foi um berço da política revolucionária, o coração do radicalismo que levou à destruição do sistema escravista no país. Pois é: os supostos caipiras já foram a vanguarda “woke”, para usar um anacronismo. E a motivação para isso era essencialmente religiosa: o cristianismo radical.
Ora, mas se isso é verdade, como as coisas mudaram tão radicalmente? É possível ter um vislumbre desse processo por meio da história familiar do protagonista de “Gilead”, o já idoso reverendo John Ames, pastor de uma igrejinha congregacionalista na localidade de Gilead, estado de Iowa (está explicado o nome do livro).
Acontece que a família de Ames, oriunda da Costa Leste dos EUA, foi parar na região justamente por causa das disputas entre abolicionistas e escravistas em meados do século 19. Conforme novos estados iam sendo incorporados aos EUA em expansão, os dois grupos entraram em conflito para ver quem conseguia estabelecer zonas abertas ao trabalho escravo ou livres dele.
O avô do reverendo, também pastor (assim como o pai de John Ames), chegou a se envolver inclusive na luta armada para libertar escravos, ajudando o célebre “terrorista” (ou libertador, dependendo da sua perspectiva, é claro) John Brown, executado pelo governo em 1859. O avô do reverendo se alistou na Guerra Civil americana para lutar contra os estados escravistas do sul e chegou a aparecer sujo de sangue na própria igreja, convocando os jovens da cidade de Gilead para se juntar a essa cruzada. Era obrigação dos cristãos lutar pela liberdade dos cativos, dizia ele.
Passada a guerra, com um custo gigantesco em vidas, o pai de John Ames passa a defender uma postura pacifista, enquanto o avô do reverendo, amargurado, diz que a vitória contra o escravismo não foi suficiente para acabar com o preconceito contra a população negra.
Assim, boa parte da amargura na história familiar dos Ames tem a ver com essa mudança de atitude, da política revolucionária para o pacifismo e/ou o conservadorismo. Trata-se justamente da trajetória seguida por essas regiões colonizadas por abolicionistas do século 19 para o 20.
É claro que há muito mais do que isso no romance. Vale lê-lo e relê-lo com calma.
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