É comum ouvir que, diante de desastres, as pessoas “estão todas no mesmo barco”. Essa ideia raramente corresponde à realidade. No contexto das mudanças climáticas e seus eventos extremos, os impactos são distribuídos de forma desigual, aprofundando desigualdades sociais já existentes. Não seria diferente nas questões de gênero: quanto mais a temperatura global sobe, mais as mulheres são expostas à violência baseada em gênero.
Um levantamento das Nações Unidas sintetiza dados e estudos para embasar essa conclusão. Altas temperaturas e eventos climáticos extremos estão associados a um aumento de diversas formas de violência de gênero, como recorrência de agressões por parceiros íntimos, exploração sexual, casamento infantil, estupro e feminicídio.
De acordo com a pesquisa, estima-se que a cada 1ºC a mais na temperatura global, os casos de violência contra mulheres provocados por parceiros íntimos aumentam quase 5%. Durante ondas de calor, foi apontado que os casos de feminicídio aumentam 28%, segundo pesquisa longitudinal realizada na Espanha. Em um cenário em que a Organização Meteorológica Mundial declarou 2024 como o ano mais quente desde 1850, com um média 1,6ºC superior, as perspectivas não são boas para o futuro.
É claro que a violência de gênero não surgiu por causa do aquecimento global. Violência contra meninas e mulheres ocorre em mesmo condições adequadas de temperatura e pressão, sendo consequência de estruturas desiguais de poder. No entanto, as evidências recentes deixam claro que as mudanças climáticas agravam essa violência, além de aumentar sua prevalência.
Eventos climáticos extremos, como secas e enchentes, tendem a causar desalojamento de famílias, perda de renda, insegurança alimentar, física e patrimonial. Em abrigos de emergência, muitas mulheres podem precisar ficar confinadas com seus próprios agressores. Esses efeitos diretos de eventos climáticos reforçam comportamentos violentos e de reafirmação de poder. Além disso, serviços de assistência social, saúde e escolas são frequentemente interrompidos ou sobrecarregados, dificultando o acesso a proteção e suporte. Nessa conta, meninas e mulheres em geral saem perdendo.
A pandemia de Covid-19 é um exemplo recente de como situações extremas levam ao aumento da violência contra mulheres. De acordo com o Banco Mundial, durante o confinamento, a probabilidade de feminicídio mais que dobrou. Mesmo após o fim da quarentena, a violência doméstica se manteve em níveis elevados, alimentada pela perda de empregos e pela instabilidade econômica.
Embora os números sobre o impacto das mudanças climáticas na violência de gênero já sejam preocupantes, é provável que estejam subestimados. A subnotificação, já usual nesses casos, se agrava em contextos onde os serviços de acolhimento e prevenção também sofrem com os efeitos dos desastres climáticos.
Reconhecer os efeitos indiretos da crise climática é essencial para enfrentá-la de maneira mais justa e eficaz. A mitigação e a adaptação às mudanças climáticas e o combate a violência de gênero não são causas isoladas – são lutas interligadas que não podem ser ignoradas.
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