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Nos braços da maioria silenciosa – 06/05/2025 – Wilson Gomes

Há uma ilusão curiosa —e muito difundida— segundo a qual a maioria, ainda que silenciosamente, quer as mesmas políticas, valoriza os mesmos princípios, enxerga o país do mesmo jeito que a gente. Essa convicção subjetiva de que nossas ideias são majoritárias, mesmo quando não são, é bem conhecida na psicologia social e atende pelo nome de viés de falso consenso.

É um viés cognitivo, ou seja, uma tendência psicológica automática que faz com que projetemos nossas características e preferências sobre o coletivo. Progressistas tendem a superestimar a adesão da sociedade —ou da melhor parte dela— aos seus valores; conservadores estão convictos de que o Brasil profundo é conservador como eles.

A esquerda tem certeza de que a massa compartilha sua visão de mundo, seu conceito de justiça e sua ideia do papel do Estado; a direita tem certeza de que qualquer pessoa lúcida e bem informada não tem dúvida alguma sobre a superioridade da sua agenda e de suas políticas. Sim, a mente costuma nos pregar esta peça: a de que os outros é que são minoria —as pessoas sensatas pensam como nós.

Até aí, nada grave, certo? Certas ilusões respondem às nossas necessidades de obter validação social, e nada há de mais reconfortante e tranquilizador do que a convicção de que estamos com a maioria —mesmo que seja uma convicção falsa.

O problema é que, cedo ou tarde, indivíduos que sustentam opiniões que se creem majoritárias, mas não são, acabam se deparando com decisões políticas ou resultados eleitorais que não correspondem às suas próprias visões. Por não serem capazes de se entender como parte minoritária da sociedade, o resultado não é apenas frustração: é ressentimento. Como aceitar que uma maioria pense como eu e, ainda assim, as coisas continuem sendo decididas de outra maneira?

Um artigo deste ano dos pesquisadores alemães Steiner, Landwehr e Harms, na Political Psychology, mostra uma clara correlação entre a crença ilusória, por parte de minorias, de serem parte de uma maioria silenciosa, e o populismo de direita que por lá anda prosperando. Afinal, se os nossos interesses não encontram canais de expressão na política institucional, é porque a elite, corrupta e anti-povo, não ouve a maioria, bloqueia sua voz e passa por cima da vontade popular.

A essa altura, a crítica ao sistema político vira ressentimento contra “as elites” e, mais um passo adiante, a política se transforma em uma guerra moral entre “o povo” e “os corruptos”. Nesse caso, sobra até para “a democracia que está aí”, supostamente distorcida pela elite traidora e corrupta —e, portanto, passível de substituição.

Essa crença ilusória de que somos maioria está ligada não apenas à hostilidade contra as instituições, mas também à intolerância contra a simples discordância. Se a maioria pensa como eu, então é justo que minha opinião prevaleça e que a suposta minoria ponha-se em seu lugar. E se alguém ousa discordar, o problema não está na diferença entre visões, mas em uma falha no caráter de quem diverge.

Divergir da política pública predileta de cada grupo, portanto, não é expressão de uma diferença legítima, mas uma declaração de guerra moral. As cotas dos identitários, a defesa da família “como está na Bíblia” dos conservadores, a centralidade do enfrentamento da desigualdade da esquerda, a crença na superioridade da gestão privada da direita —tudo isso está fora de discussão.

É intocável, mesmo em nível argumentativo. E qualquer política pública em contrário será considerada uma abominação. Na raiz de tudo, está a certeza de que a maioria compartilha nossas convicções, de que a sociedade não está dividida ao meio e de que os minoritários são sempre os outros.

No fundo, essa convicção nos poupa do esforço de abrir espaço para buscar dados, escutar, revisar nossas certezas. Essa ilusão de consenso nos permite permanecer no conforto das nossas bolhas, certos de que representamos o bem, o povo e a verdade.

O outro lado vira ameaça; o pluralismo, um ruído incômodo; “essa democracia que está aí”, um estorvo que atrapalha o cumprimento do destino moral do nosso grupo.

Talvez o maior desafio para a democracia hoje não seja apenas o ódio ou a desinformação, mas essa fé cega de que já vencemos o debate antes mesmo de ele começar. Acreditar que somos os porta-vozes da maioria silenciosa é uma tentação poderosa, mas perigosa, porque é uma porta aberta ao populismo, à intolerância e à incapacidade de lidar com a complexidade do mundo —ainda mais em sociedades polarizadas e radicalizadas.


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