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Lula compra briga para manter Janja sob os holofotes – 27/05/2025 – Wilson Gomes

Na corda bamba no que se refere à popularidade, Lula deveria escolher com mais cautela as lutas que trava. Enfrenta uma oposição fortíssima no Congresso —e ainda mais eficaz na guerra de movimento que parte do mundo digital, alcança o noticiário tradicional e circula na conversa horizontal entre os cidadãos. Quando se está em desvantagem ao mesmo tempo no parlamento e na opinião pública, governar exige economia de desgaste, foco em poucas metas estratégicas e, sobretudo, o cuidado de não se indispor com os independentes.

Num governo com poucas vitórias na comunicação e incapaz de comandar a pauta pública —terreno em que Jair Bolsonaro era eficiente—, evitar que o presidente e sua esposa continuem produzindo cobertura negativa já seria, por si só, uma vantagem. Ainda mais em um país partido ao meio, em que metade do eleitorado não morre de amores por Lula e muito menos por uma primeira-dama que, de forma ostensiva, busca visibilidade e reconhecimento da própria importância como figura pública.

Desde o vexame internacional do “fuck you, Elon Musk!”, parecia que a primeira-dama havia reconsiderado os meios para alcançar seu projeto. Mas a cautela, ao que tudo indica, se esgotou. No episódio em que Janja decidiu explicar ao líder chinês —que comanda um regime de vigilância digital extrema— os supostos danos causados pelo TikTok no Brasil, vê-se que a ânsia por reconhecimento continua a mesma. E é defendida e compartilhada pelo presidente.

Um conjunto incômodo de perguntas, contudo, desafia as justificativas oferecidas. Do ponto de vista da competência da primeira-dama em assuntos digitais: será que ela sabe que o presidente da China é um autocrata? Que o país vigia severamente seus cidadãos e promove campanhas digitais ofensivas mundo afora? Que pedir a Xi Jinping uma parceria regulatória em plataformas digitais é como pedir a Putin uma consultoria sobre direitos humanos?

O mais grave, porém, é que Lula e Janja vêm agindo como se a primeira-dama fosse parte formal do governo, uma espécie de autoridade adjunta, com status semelhante ao da cúpula da República, voz ativa em assuntos de Estado e o direito de representar o país ao lado —ou até no lugar— do presidente.

Em reação às críticas, Janja se defendeu dizendo que “ninguém a fará calar”, que o espaço que ocupa foi conquistado. Mas que espaço é esse, exatamente? Se for autoridade intelectual, trata-se de um capital simbólico que não se conquista por reivindicação —ele precisa ser reconhecido pelos outros. Se for autoridade governamental, é preciso indicar com clareza qual trecho da Constituição confere à esposa do presidente essa prerrogativa. Na democracia, funções políticas não se herdam nem se conquistam por associação conjugal. Então, não —cônjuges de presidentes não governam com eles nem compartilham com eles a chefia do Estado. E qualquer pretensão nesse sentido carece de legitimidade.

Diante desses dois obstáculos incontornáveis, resta à primeira-dama e aos seus apoiadores recorrer a uma inversão moral: quem critica suas pretensões de autoridade estaria, na verdade, movido por machismo ou misoginia. Curiosamente, esse escudo retórico não vale para outras figuras femininas da política. Michelle Bolsonaro, Damares Alves, Carla Zambelli ou Rosangela Moro —que a esquerda ama detestar— não gozam da imunidade de que Rosângela Lula é a mais alta beneficiária. Conservadoras, ao que parece, não têm gênero: são figuras públicas julgadas pelo que fazem e dizem, segundo o padrão republicano. Uma regra que, estranhamente, não se aplica à esposa progressista do presidente. Agora tentem explicar esse duplo padrão ao brasileiro comum.

Em desagravo por mais uma suposta tentativa de “calar a voz” da primeira-dama, o governo a cobre de recompensas. É ela —e não o vice-presidente— quem representa o chefe de governo em diversas viagens e reuniões de alto nível. E é também seu nome que aparece com mais frequência na lista de honrarias e condecorações reservadas a brasileiros de reconhecido merecimento. A Ordem do Mérito Cultural acaba de se somar à Ordem de Rio Branco e à Medalha de Mérito Oswaldo Cruz na coleção da esposa do presidente. Como explicar isso ao cidadão comum?

Difícil imaginar forma mais ostensiva de desafiar a opinião e o sentimento públicos sobre a atuação da primeira-dama. Ao que tudo indica, Lula está bancando a aposta —e pagando para ver. Olhando daqui da planície, parece arriscado. Mas imagino que do Planalto sempre se consiga enxergar mais longe e com mais clareza.


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