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Evolução e criação juntas na obra de Francisco – 26/04/2025 – Reinaldo José Lopes

A perda do papa Francisco na semana que passou me levou a folhear novamente sua mais importante e inovadora encíclica, “Laudato Si’”, de 2015. Eu já tinha lido o documento de cabo a rabo duas vezes antes, além de consultá-lo em outras ocasiões, mas fiquei feliz ao perceber que ainda havia algumas joias ali pelas quais eu tinha passado reto anteriormente. Uma delas é a seguinte citação:

“A natureza nada mais é do que a razão de certa arte inscrita nas coisas, pela qual as próprias coisas se movem para um fim determinado. Como se o mestre construtor de navios pudesse conceder à madeira a possibilidade de se mover a si mesma para tomar a forma da nave.”

Que analogia mais curiosa, pensei. Cliquei na nota de rodapé (estava lendo a versão online, no site do Vaticano) e conferi a fonte: “In Octo Libros Physicorum Aristotelis Expositio”. Ou seja, o comentário feito por são Tomás de Aquino (1225-1274) a respeito da “Física”, obra do filósofo grego Aristóteles. Antes de citar a frase do santo, Francisco tinha escrito: “O Espírito de Deus encheu o Universo de potencialidades que permitem que, do próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo de novo”.

Essas poucas linhas são suficientes para mostrar como (já que estamos falando de potencialidades) a suposta briga acerca de aceitar ou não a evolução dos seres vivos é muito menos inevitável do que se imagina para a tradição cristã, e isso há pelo menos oito séculos (e provavelmente mais).

A “Laudato Si’” costuma ser descrita, com bastante acerto, como a encíclica climática de Francisco. É um texto que explica com clareza admirável o tamanho do buraco civilizacional em que andamos nos enfiando nos últimos dois séculos por causa da nossa voracidade por energia e matérias-primas. Para além desse diagnóstico, porém, o que a mensagem papal faz é apresentar uma visão alternativa e muito mais grandiosa do potencial da nossa espécie e das demais formas de vida —aliás, seguindo os passos de são Tomás de Aquino, de certo modo.

Tal como esse erudito medieval promoveu a fusão entre a filosofia aristotélica e a teologia cristã, Jorge Bergoglio aponta o caminho para uma visão menos antropocêntrica e mais generosa da doutrina da Criação, incorporando o parentesco e a interconexão das formas de vida que a ciência moderna revelou.

É possível encontrar sementes dessa possibilidade no pensamento de são Francisco de Assis, é claro, mas também na tradição bíblica. Os israelitas que escreveram o Antigo Testamento e os primeiros cristãos, afinal, viveram num mundo em que a fragilidade humana diante do resto do Cosmos era muito mais óbvia. É preciso recuperar algo dessa experiência para “acabar com o mito moderno do progresso material ilimitado”, escreveu ele.

Esse mito, fortalecido pelos poderes que a humanidade conquistou por meio do avanço científico e tecnológico, produziu uma distorção cognitiva segundo a qual todo e qualquer problema pode ter uma solução técnica, e absolutamente qualquer fenômeno pode ser controlado pela engenhosidade humana. Extinguimos um bicho? Não tem problema, depois a gente clona.

Mas há outro caminho, insistiu o papa. “Nós e todos os seres do Universo estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família.” Deus e Darwin assinam embaixo.


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