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Como falar com crianças sobre extinção da natureza? – 30/04/2025 – Era Outra Vez

Aqui neste espaço, já cansamos de escrever que o livro e a literatura não têm função de ensinar nada —seja para adultos, seja para crianças. Não é papel da literatura infantojuvenil transmitir lições de moral, ensinar a escovar os dentes, ser instrumento pedagógico ou criar cidadãos obedientes. Nada disso. O livro não justifica a sua existência com fins práticos.

Na verdade, é o contrário. A arte bagunça, mexe, brinca. A literatura é o campo da desobediência e do uso da criatividade para fazer o inverso do que todo mundo está esperando. É transgressão. E é aí que nascem muitos ruídos com a sala de aula.

“Ou a educação vai ser pensada com o caráter transgressor que ela deveria ter, potencializando a perspectiva do encontro dela com a cultura, ou a cultura vai ser acorrentada pelo viés normatizador, conservador e adestrador da educação”, escrevem Luiz Rufino e Luiz Antônio Simas em “Fogo no Mato”, livro de ensaios lançado em 2018.

Mas como manter esse espírito rebelde e desobediente dentro da escola? Como produzir literatura transgressora que dialogue com o currículo escolar, mas sem escorregar num viés normatizador, careta e enciclopédico?

Três livros recentes para crianças e jovens conseguem fazer isso com temas urgentes e interligados: a destruição da natureza, a extinção das outras espécies e a crise climática, mas sem cair no tatibitate professoral ao abordar os impactos negativos do ser humano sobre o planeta. Conheça abaixo as obras.

O Invasor

“Tchssssc.” É esse barulho estranho que faz tudo mudar em “O Invasor”, obra de Daniel Cabral e Fereshteh Najafi que venceu a primeira edição do prêmio Filex de ilustração e livro ilustrado. Quando o tigre ouve esse som esquisito, ele logo entende que um desconhecido está chegando à floresta. E, é claro, acha melhor fugir desse tal invasor. Outros bichos também acompanham o felino. O esquilo, a zebra, o avestruz, a arara, o macaco, todos rapidamente batem em retirada. Não é spoiler dizer que o invasor é o ser humano —na verdade, o grande pulo do gato é descobrir quem é essa pessoa. Com uma narrativa que quebra a quarta parede do livro e coloca o leitor no meio da história, “O Invasor” toca em temas como o avanço do homem sobre a natureza e as faíscas que surgem desse encontro. No fim da história, porém, há uma mensagem de otimismo e esperança, tanto que os personagens chegam a preparar uma festa para o ser humano que vem aí. Só que, na vida real, esse contato é muito menos festivo. As populações de animais selvagens diminuíram 73% em 50 anos, segundo um relatório do ano passado publicado pela ONG WWF. A causa? Justamente o homem, que produz as mudanças climáticas e a diminuição das áreas de natureza.


Submersos

Vazamentos de petróleo, microplásticos, aumento da temperatura das águas, pesca ilegal, extinção de corais. Todo mundo já sabe como o homem está colocando os oceanos e os rios em xeque. Mas “Submersos”, livro só de imagens feito por Estevão Azevedo e Vitor Bellicanta, faz um pergunta interessante a partir desse cenário: e se, no meio do caos ambiental e climático, a fauna resolvesse sair das águas e conviver na cidade ao lado dos humanos? Equilibrando um discurso ambientalista e uma fantasia com toques de absurdo, a obra mostra baleias em banheiras, tubarões dirigindo ônibus, polvos motociclistas, vagões de metrô cheios de cardumes e uma intersecção entre natureza e cidade que está longe de ser pacífica. Nas ilustrações de Bellicanta, o desconforto dos humanos com a presença dos bichos fora d’água é evidente. A certa altura, acompanhamos até um julgamento, no qual uma tartaruga arbitra o conflito entre pessoas e animais. Mas quem são os invasores, afinal? São os bichos, que saíram dos mares rumo ao espaço urbano? Ou são os homens, que assaltam sistematicamente o habitat das outras espécies? O livro foi premiado neste ano na Feira de Bolonha, na Itália, numa categoria especial do troféu Braw, que selecionou 150 obras infantojuvenis de todo o mundo que falam sobre sustentabilidade.


Tapera

Tudo começa com uma brincadeira. Três irmãs se juntam sobre o chão seco para desenhar sobre a terra, onde criam figuras de animais. Mas essa é só a superfície de “Tapera”, livro de Marcelo Jucá e Vanessa Prezoto. Como ocorre em qualquer brincadeira infantil, há muito mais complexidade na obra e, por baixo da terra seca, esconde-se uma distopia ambiental. Logo fica claro que as três crianças estão desenhando bichos que nunca viram. Fauna e flora já não existem mais no mundo. Para as personagens, elefantes tinham chifres e três olhos. Onças exibiam dentes enormes. Micos comiam melancia e tinham nomes como mico-sabão-torrado. Árvores tocavam o céu. A conversa entre as irmãs vai misturando memória e invenção e revelando um universo no qual a infância tenta reconstruir aquilo que os adultos destruíram. Com texto cuidadoso e ilustrações feitas com pigmentos de terra, “Tapera” cria um equilíbrio fino entre o lirismo e a denúncia ambiental, mas sem cair na tentação de criar um final aconchegante ou pomposo. Num cenário em que a natureza foi extinta, brincar talvez seja a única saída.


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