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Como ‘Bonitinha, mas Ordinária’ explica o Brasil – 01/05/2025 – Mise-en-scène

A máxima rodriguiana — “toda família em algum momento começa a apodrecer”, dita pelo personagem Peixoto (Marcio Araújo) — ganha contornos ainda mais sombrios na encenação de “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária ou No Brasil Todo Mundo é Peixoto” dirigida por Nelson Baskerville. A montagem revive o texto clássico e o transforma em espelho do Brasil pós-2022, onde o “deserto de pneus” no palco evoca os acampamentos bolsonaristas e converte-se em símbolo de uma aridez que não é apenas política, mas moral. As sacolas plásticas que cobrem os rostos dos atores completam a metáfora: a hipocrisia que Nelson Rodrigues sempre escancarou agora se multiplica em tempos de discursos conservadores inflamados e falsa moralidade.

O conflito central da peça — Edgar (Lauro Fagundes) dividido entre o casamento por interesse com Maria Cecília (Júlia Castanheiro) e sua paixão por Rita (Naiara de Castro) — sai do drama individual para se tornar alegoria da ética brasileira. A pergunta “todo mundo tem um preço?” ressoa como um eco perturbador, expondo a normalização da corrupção e a falência dos valores em uma sociedade que cultua o dinheiro enquanto finge venerar princípios. A família que deveria ser refúgio, neste universo, é um antro de segredos e baixezas, microcosmo de um país onde relações são transações e laços se desfazem sob o peso do poder.

Fernando Fecchio, responsável pela coreografia, traduz em gestos essa degradação. Seus movimentos são sintomas: corpos que se arrastam, se enlaçam com violência, se contorcem em cenas que beiram o grotesco. As máscaras de sacola plástica transformam os atores em autômatos da hipocrisia, criando uma fisicalidade que torna visível o que Rodrigues descreveu em palavras. Em certos momentos, a coreografia chega a lembrar um organismo doente, com membros que se apoiam apenas para puxar o outro ao chão — imagem perfeita da dinâmica social que a peça critica.

Rompendo com a tradição trágica de Rodrigues, a peça tem um final feliz, fazendo contraponto aos eventos recentes do país, dos julgamentos do 8 de janeiro à retomada de discussões sobre justiça social. É como se autor e diretor sugerissem que, mesmo diante de tanta podridão, ainda há espaço para esperança — ainda que frágil.

Encenada no Teatro de Contêiner, espaço marginal por excelência, e interpretada por um elenco jovem, a montagem ganha urgência. As vozes dessa nova geração questionam até que ponto as mazelas denunciadas por Rodrigues persistem ou se, finalmente, há brechas para ruptura. Ao reinserir o dramaturgo no debate contemporâneo, Baskerville instiga o público a encarar seu próprio papel nessa engrenagem. “Bonitinha, mas Ordinária” se torna, assim, ritual de confronto, território onde distopia e fé coexistem, reafirmando o teatro como espaço vital para a crítica e a mudança.

Três perguntas para…

… Nelson Baskerville

Esta montagem traz alguma ruptura estética ou conceitual em relação a encenações anteriores da peça? Como você reinventa um clássico sem perder sua essência?

A premissa aqui foi trazer a atualidade do texto de Nelson e as recentes circunstâncias que o país (e o mundo) está enfrentando. Fica a pergunta: se Nelson Rodrigues estivesse vivo hoje, qual seria seu posicionamento diante desse avanço da extrema-direita. Sabemos que Nelson foi de direita e o comunismo o assustava principalmente pela falta de liberdade de expressão dos regimes até então conhecidos. Para ele “a liberdade é mais importante que o pão”. Porém sabemos também que depois de ter seu próprio filho torturado pela ditadura civil-militar ele se volta contra o regime, percebendo que seu pior pesadelo estava em curso dentro da sua própria casa.

Atualmente a liberdade de expressão defendida pela direita brasileira é retórica e acredito que Nelson quando tece suas frases do tipo “no Brasil, todo mundo é Peixoto” ou “no Brasil, quem não é canalha na véspera, é canalha no dia seguinte” ou ainda “toda unanimidade é burra” refere-se, principalmente a uma camada da população que não aceita o contraditório, que pede a volta do regime de exceção, reza para pneus ou espera ataques alienígenas através de aparelhos celulares.

Nessa montagem foram atualizados apenas alguns nomes de personagens citados que não existiam na época como: General Heleno, Trump, Zelensky e Putin, quando o personagem Werneck (interpretado por David Parizotti) está abrindo mão de suas posses porque a qualquer momento uma bomba nuclear pode explodir na sua cabeça. Mas o texto de Nelson é falado integralmente sem nenhuma mudança.

A escolha de um elenco predominantemente jovem foi uma decisão consciente para trazer novas perspectivas à obra rodriguiana?

A peça é resultado de uma oficina de montagem em parceria com a Inbox Cultural, um expediente que pratico 2 vezes por ano justamente para pesquisa de linguagem e inserção de atores e atrizes com variadas formações no panorama cultural da cidade. Muitos artistas se formam e não tem espaço para experimentações e aprofundamento de seus trabalhos e é isso que as oficinas oferecem.

Como você percebe a evolução de seu próprio olhar como diretor sobre o universo de Nelson Rodrigues que é muito presente em seu trabalho?

O primeiro trabalho teatral que realmente me impactou quando jovem foi o de Antunes Filho com seu “Nelson Rodrigues – O Eterno Retorno”. Ali tive a noção que Nelson, como todo clássico, era maleável a leituras contextualizadas, ou seja, seu olhar sobre a sociedade brasileira seria sempre atual. Comecei meu primeiro “17 X Nelson” em 2004, depois de ter montado várias peças do autor, no Teatro Célia Helena, onde lecionei durante 20 anos. Acredito que comecei vendo Nelson com olhar mais “místico” devido as 4 tragédias dele (Álbum de Família, Dorotéia, Anjo Negro e Senhora dos Afogados) que a princípio mais me impactaram. Em “17 X Nelson – O inferno de todos nós”, espetáculo da AntikatártiKa Teatral em 2005 nos inspiramos no inferno de Dante Alighieri onde os personagens estavam numa espécie de purgatório, pagando por seus pecados. Hoje, em “Bonitinha, mas Ordinária” vejo Nelson prevendo a ascensão da extrema-direita, em um universo de asfalto, pneus e sacos plásticos. Nelson Rodrigues brincava que não gostava dos diretores paulistas. Espero não estar o decepcionando.

Teatro de Contêiner Mungunzá – rua dos Gusmões, 43, Santa Ifigênia, região central. Sex. e sáb., 20h. Dom., 18h. Até 18/5. Duração: 110 minutos. A partir de R$ 30 em ciamungunza.com.br


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