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China: Estratégia de incentivo ao consumo guarda desafios – 02/05/2025 – Igor Patrick

Na cidade de Yongkang, no interior da China, jovens ostentam jaquetas Arc’teryx, frequentam cafeterias de grife e aguardam com expectativa a chegada de um Sam’s Club. Não se trata de Pequim nem de Xangai, mas de uma cidade média do interior, até pouco tempo atrás fora do radar do consumo sofisticado.

O cenário é destacado em uma reportagem recente do portal estatal Sixth Tone que mostrou como o gosto por bens premium está se espalhando para além das metrópoles chinesas, impulsionado por ecommerce, infraestrutura e uma nova classe média que emerge onde antes havia apenas fábricas e agricultura.

Não é um fenômeno trivial. Desde 2020, Pequim passou a priorizar uma nova diretriz chamada “dupla circulação”, cujo objetivo é reduzir a dependência do mercado externo e ativar o consumo doméstico como motor primário do crescimento. A ambição vai além da economia: trata-se de fortalecer a China frente a sanções, tensões comerciais e choques globais —uma forma de blindagem geopolítica.

A estratégia é referendada por economistas no mundo todo e fez parte, inclusive, das recomendações do FMI (Fundo Monetário Internacional) publicadas na semana passada para que Pequim compense o peso das tarifas impostas por Donald Trump.

Mas essa virada encontra obstáculos profundos. Apesar do crescimento absoluto do consumo, sua participação no PIB caiu sistematicamente desde os anos 1990. Em termos relativos, os chineses ainda consomem muito pouco: menos de 40% do PIB é formado por consumo das famílias —em países como Índia ou Brasil, esse percentual é superior a 60%.

Esse freio não decorre de frugalidade cultural, mas de fatores estruturais. Insegurança previdenciária, alto custo da moradia, crédito restrito e escassez de políticas redistributivas são alguns dos fatores, por exemplo. Ademais, o consumo desejado pelo Estado acaba contido pelas condições que ele mesmo impõe.

A distribuição geográfica desse consumo tampouco é homogênea. Em grandes cidades e centros em ascensão, os gastos com serviços crescem com força, mas há vastas regiões (especialmente no nordeste industrializado) onde a população encolhe, o poder de compra estagna e o dinamismo desaparece.

A China tem centenas de cidades médias, mas apenas uma fração delas se conecta de fato à nova economia do consumo. A promessa do mercado interno como eixo nacional ainda repousa sobre uma geografia absurdamente desigual.

Essa estratégia também encerra um paradoxo político. Ao estimular o consumo, o regime promove —ainda que indiretamente— valores como individualização, mobilidade e diferenciação. Mas tudo isso ajuda a tensionar o modelo centralizador que sustenta o poder do partido. Transformar cidadãos em consumidores significa, em alguma medida, conceder-lhes liberdade de escolha.

Além disso, há uma contradição de escala. Sustentar uma economia voltada para dentro requer mais do que slogans. É preciso redistribuir renda, ampliar a proteção social, garantir serviços públicos e gerar confiança no futuro.

Hoje, quem consome com vigor são nichos: jovens de cidades médias conectadas, migrantes que voltam às suas cidades natais com novos hábitos e pequenos grupos de ascensão recente. A base ampla e sólida necessária para a transição ainda é muito instável para ser uma opção real à perda de mercado nos EUA.

Consumir, na China de hoje, deixou de ser um ato econômico e passou a ser uma engrenagem da ambição nacional. Mas transformar cidadãos em consumidores exige algo raro nos regimes autoritários: autonomia.


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