No vídeo viral, um homem saltitava “chegou meu cachorro de 40 mil reais!”. O cachorro da marca Unitree nasce de uma caixa, vem com manual de instruções, faz dancinha, cheio de graça, simulando afeto pelo comprador. A bebê reborn pode surgir, para não usar a palavra nascer, com um teatro mais elaborado. O vídeo da vez mostra uma mulher encenando a cesárea com um estilete. Consigo me imaginar sentindo carinho tanto pelo cachorro, quanto pela bebê de plástico. O afeto nos pertence, ele pode ser direcionado para qualquer lugar. Não?
Outro dia, entrevistei uma pessoa que contou sobre a paixão por um carro. Não questionei se tratar de uma verdadeira história de amor, vi semelhanças com o bumblebee,. Eu mesma ando apaixonada por um projeto, uma ideia.
Objetos que recebem amor podem ser chamados de totens. Eles protegem ou dão sorte, moram em um altar. A paixão por ideias pode salvar ou matar. Dar sentido para a vida ou justificar um assassinato. O enamoramento pela ideia que salva é chamado de propósito. Muitas das paixões por ideias que matam podem ser encontradas em seitas, religiões, doutrinas que enaltecem um tipo de ser humano em detrimento de outro.
Amar uma ideia que traz propósito é trabalhoso. Só com muito esforço trará retorno para o que chamamos de ‘total dedicação’. Amar uma criança nem sempre traz retorno. É o amor incondicional, como dizem. Vale mais a pena desapegar de qualquer remuneração sentimental. Preencher o desejo por esse pagamento em outro lugar.
Amar um cachorro vai acabar em tristeza. Os cachorros, os gatos, os papagaios, todos morrem. Eles têm um fim semelhante ao nosso. Definham, perdem os movimentos, a capacidade de saltar de alegria. Bichos de estimação ainda geram custos não inclusos no plano de saúde corporativo. Fui no veterinário outro dia e tinha fila para quimioterapia. O cachorro de alumínio de 40 mil reais pode ser, no longo prazo, menos custoso do que o da lambida.
O investimento do amor retorna rápido com seres inanimados. Funcionam como um espelho. Você entrega um carinho que é refletido por esses objetos e alimenta o vazio no nosso peito. Custo baixo, pouco trabalho, demandam quase nada.
Hoje, pensei nisso tudo porque acordei com preguiça de amar. Imaginei a casa toda inanimada. Havia barulho, gente e bichos, mas o único sangue quente era o meu. Um motor de emoção sentado na cadeira no meio da sala, despejando e recebendo afeto, sem mover um grão. Mas esse sistema de amor é insustentável, assim como tantos outros sistemas que criamos ao nosso redor. Na cena imaginária, esse afeto foi mudando de cor. Se tornou cinza, afeto-preguiça. Até que eu apaguei. Sem o motor central, de sangue quente, o afeto deixou de existir.
Percebi que o afeto entregue nesse sistema não repassa nada, só espelha. É o fim mais triste do definhar da vida.
É simples dizer que estamos preenchendo uma carência com um produto. Carência é algo pejorativo. Estamos entregando o que de mais valioso temos, o afeto, para o nada. Deixamos fluir pelo ralo um tesouro que deveria ser multiplicado. Como purpurina.
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