Ninguém esperava que nas comemorações dos seus 60 anos a Globo relembrasse algum dos muitos erros e omissões graves que cometeu em sua história. Não era o momento para isso. Festa é festa. Mas ninguém poderia imaginar que a data alegre fosse usada para polir a imagem de Regina Duarte, um dos símbolos do que o governo Bolsonaro exibiu de pior.
A história de Regina foi reescrita em dois atos nos últimos dias. Primeiro numa entrevista a Pedro Bial, em 21 de abril, e depois na grande festa exibida pela emissora, na última segunda-feira (28).
Bial conversou com Regina sobre “Roque Santeiro”, a novela de Dias Gomes censurada no dia de sua estreia, em 1975, e refeita dez anos depois, com gigantesco sucesso de audiência. Betty Faria, a protagonista da novela proibida, recusou o convite para fazer o mesmo papel em 1985, o que abriu caminho para Regina viver uma das personagens mais marcantes de sua carreira.
Como falar sobre censura com Regina Duarte driblando o fato de que ela foi secretária de Cultura do governo Bolsonaro? Como ignorar que ela aceitou o papel de estrela reluzente de uma administração que odiava cultura?
A entrevista durou 33 minutos. Nos primeiros 32, Bial evitou lembrar desse passo inesquecível que Regina deu na carreira. Só no minuto final o apresentador trouxe o assunto à tona. Não para lamentar que a atriz tenha aceitado esse papel deplorável, mas para criticar quem a criticou.
“Você, que comprou uma briga com um território tradicionalmente da esquerda, que são as artes e espetáculos, e você se alinhou com a direita, você foi censurada pelas pessoas! As pessoas hoje cancelam e se orgulham de cancelar e de censurar!”, disse Bial.
Regina aproveitou a deixa e disse: “Eu fui chamada pelo governo Bolsonaro para participar da Secretaria Especial de Cultura e fui muito defenestrada por causa disso. Fui bastante”. Registre-se que Regina não participou da secretaria; ela comandou a área.
Ao praticamente ignorar esse momento no governo Bolsonaro, Bial perdeu a oportunidade de relembrar o que a atriz pensava sobre censura quando era secretária de Cultura.
“Eu apoio o governo Bolsonaro porque acredito que ele era e continua sendo a melhor opção para o país. ‘Ah, mas ele fez isso e aquilo.’ Eu não quero ficar olhando pra trás. Se eu ficar olhando pelo retrovisor vou dar trombada, posso cair no precipício ali na frente”, disse ao jornalista Daniel Adjuto, na CNN Brasil, em maio de 2020.
Sobre o período da censura, quando “Roque Santeiro” foi proibida de ir ao ar, Regina afirmou: “Ficar cobrando coisas que aconteceram nos anos 60, 70, 80? Gente, vamos embora, pra frente, Brasil!”, disse, cantarolando um trecho de “Pra Frente Brasil”, a canção ufanista que embalou a seleção brasileira na Copa de 70. “Não era bom quando a gente cantava isso?”, perguntou.
Adjuto lembrou: “Muita gente morreu na ditadura”. E Regina reagiu assim: “Cara, na humanidade não para de morrer. Sempre houve tortura. Meu Deus do céu! Stálin, Hitler, quantas mortes. Não quero arrastar um cemitério de mortos nas minhas costas. Sou leve, estou viva, estamos vivos”, disse. “Por que olhar pra trás?”
Uma semana depois da entrevista a Bial, na grande festa exibida pela Globo, Regina encenou um clipe que relembrou a novela “Véu de Noiva”, escrita por Janete Clair e dirigida por Daniel Filho, em 1969. O folhetim é um marco da virada que levou a emissora a se tornar a maior produtora de telenovelas do país. Daniel, o arquiteto maior dessa história, foi ignorado na festa.
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