Logo nas primeiras páginas de sua mais recente obra, Memórias de uma Antropóloga Malcomportada, Mirian Goldenberg, minha vizinha aqui de colunismo, sacode tudo dentro de mim dizendo que chora “todos os dias, de arrependimento e de culpa por não ter conseguido salvar” sua mãe de uma realidade cheia de durezas e de tristezas.
Por mais que eu tenha plena consciência de que “o outro é o outro”, independentemente de quem seja, amargo também não ser capaz de tirar de minha velha certas memórias, dores e dissabores que, em minhas projeções, poderiam dar a ela um viver mais suave, mais aberto a belezas e emoções.
Minha mãe, octogenária, carrega, mesmo já tendo chegado a um destino bem mais tranquilo que aquele tumultuado passado, um currículo de abandonos, de violências, de momentos inglórios e de uma falta quase absoluta de disposição para, finalmente, relaxar, permitir-se sorrir para o nada.
Dia desses mandei para ela o livro da Carla Madeira, “Tudo é Rio”, porque minha mãe adora uma história sofrida. Se tiver paciência e coração forte para escutar, ela passa horas narrando, com detalhes de apertar a garganta, as vezes que dormiu na rua, enrolada em jornal, enquanto eu era “arrumado” em hospitais de reabilitação da cidade grande, por causa da pólio.
“Gostei muito do livro, mas tive de ir voltando as páginas porque esquecia rápido o que tinha acontecido no capítulo anterior. Minha cabeça não presta mais não”, disse ela. Tenho gravado várias de nossas conversas e botado na nuvem da tecnologia. Isso estará preservado, ao menos.
Salvar a saúde, a qualidade da existência dela também é conta que bate forte aqui em mim. Mas, mamãe não vai a médicos, reluta até o limite da dor. É daquela turma que faz o dr. Drauzio Varella coçar a careca porque “não quer descobrir doença”.
Dizem os sábios que os velhos precisam viver a seu modo, com seus valores e da forma como bem entendem e, se cultivam a tristeza –a Mirian defende que isso é absolutamente legítimo—, é porque suas pás, suas enxadas e seus rastelos assim os indicam.
Pode até ser, mas sou um filho que queria ter visto a mãe ser flor e não apenas aquela que cuida de um jardim repleto de cores e de rosas do deserto. Queria ter visto minha mãe borboleta e não apenas cuidando de casulos.
Queria ter salvado milha velha de uma infância sem feitura de mala de memórias generosas para que ela tivesse tido a chance e as roupas para ser uma incrível geradora de momentos inesquecíveis para suas pequenas crias também. Mas, como ela sempre diz, “pé de galinha não mata pinto”.
É muito provável que a gente não consiga mudar os reflexos do que nossas mães viveram nem daquilo que conseguem realizar atualmente. Mas, com alguma sorte, talvez consigamos resgatar para melhor o que há entre elas e nós.
A minha ainda frita bolinhos de polvilho e faz café em finais de tarde quando eu a visito e imploro pelo quitute –é tudo mais lento, um pouco mais arriscado, mas igualmente prazeroso.
Às vezes seja isso que vá apaziguar essa sensação de filho: gestos mais frequentes de nós dois, escutas mais atentas, paciência em nossas urgências –as minhas e as delas— e espaço para deixar ser.
Como muito bem diz uma amiga querida, “a tristeza pode ser parte da sua mãe e para ela tenha outro significado. Pode ser parte da jornada, parte da própria vida vivida”. Feliz Dia das Mães.
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