Tão elástico é o escopo do identitarismo que até mesmo criminosos podem se vangloriar de uma identidade específica. Há quem se defina orgulhosamente como “bandido e não band-aid”. Semanas atrás, morreu em confronto com a polícia carioca um chefe do tráfico, bandido pleno, que se identificava como “Cheio de Ódio”. Em “Dia Zero”, série em que Robert de Niro interpreta dois chefões da máfia, diz um deles que não existe meio-bandido. O que contraria a dosimetria penal de “meio-termo” para o 8 de janeiro, sugerida por Michel Temer.
Toda e qualquer identidade se constrói na relação com a alteridade, buscando unidade nas identificações. A isso se presta a palavra bandido, largo espectro de sentido para outras, como criminoso, celerado, ladrão, chantagista. O italiano “bandito” designa alguém banido do convívio comunitário e mancomunado em bandos, com interesses próprios e disruptivos. Isso amplia o escopo do banditismo além da criminalidade penal, pois “bando” implica também desorganização social e moral de formas institucionais.
É ângulo adequado não só a associações criminosas de grande porte (máfias, milícias, sindicatos da morte) como também a aparatos de Estado que se constituam ilegalmente como autônomos. Um fenômeno ambíguo e ubíquo, portanto, no sentido de ocupar ao mesmo tempo lugares sociais diversos. Não à toa, décadas atrás, um prefeito carioca saudou as milícias como “solução comunitária” para a segurança.
Entre nós, caso despercebido é o do Poder Legislativo em suas três instâncias (municipal, estadual e federal) que, nas grandes capitais, desmoralizam a representatividade. Vereadores originam-se de redutos eleitorais dominados por traficantes e milicianos, sem esconder suas promíscuas fidelidades. Polícias militares milicianizam-se pelo descontrole. Desembargadores vendem sentenças. A promiscuidade tem patamares inquietantes em São Paulo. No Rio de Janeiro, houve a prisão sucessiva de cinco governadores. De um desses, procede a mais deslavada e patética autoidentificação bandida de todos os tempos: “Exagerei”.
Mas o alarme soa mais alto quando, no plano federal, muitos se elegem como bandidos-matadores. Ou então quando a formação de bando se define por desconexão com a comunidade nacional.
Assim é que, segundo as pesquisas, a maioria dos brasileiros se mostra favorável à punição dos golpistas do 8 de janeiro, porém a Câmara arregimenta 262 assinaturas de apoio à anistia ampla. Ainda que não prospere, é vexaminosa a contaminação da dita alta legislatura por espírito alheio ao mais grave dos crimes contra a República, implicitamente abrindo portas à sua repetição.
Vexame possível apenas num contexto legislativo em que interesses de uma súcia (emendas sem transparência, favores eleitoreiros etc.) sobreponham-se à vida nacional. Não é criminalidade penalizável, mas banditismo mesmo. Por isso essa palavra se tornou tão sensível na Câmara: um deputado pode ter seu mandato cassado por denunciar a corrupção das emendas e chamar o líder de “bandido”.
Haverá quem ache apenas retórica a elasticidade desse conceito. Mas este é um tempo de choque de realidade, em que caem as máscaras das crenças e das palavras. Com a democracia posta em xeque por sinistras boiadas, é hora de dar nome aos bois, lidar com aparências enganosas pelo que realmente são na verdade do espelho: entidades bandidas.
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