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Adesão da esquerda ao papa Francisco é sintoma da sua crise de referências – 28/04/2025 – João Pereira Coutinho

Passei a semana em estado de choque. A esquerda em peso prestou homenagem ao papa Francisco como se tivesse descoberto um novo revolucionário para as suas hostes.

Segundo parece, a admiração dos camaradas explica-se por três motivos: as críticas ao “capitalismo selvagem” que Francisco foi emitindo; a preocupação com os imigrantes deste mundo; a tolerância perante minorias sexuais, perfeitamente captada na sua pergunta “quem sou eu para julgar?”.

Sim, mil vezes sim: Francisco foi um papa admirável. Mas serei o único a ver nos eflúvios progressistas algo de bizarro?

Em desespero de causa, recorri aos textos canônicos. Suspirei de alívio. Críticas ao “capitalismo selvagem”?

Na era moderna, Leão 13 estabeleceu o tom e o conteúdo da doutrina social da igreja. Foi em 1891, na sua “Rerum Novarum”, em que aparelhou as predações do socialismo revolucionário com os abusos do liberalismo econômico sem limites.

A lição ficou para a posteridade. Mesmo João Paulo 2º, “persona non grata” para a esquerda que ainda suspira por Moscou, reafirmou a crítica na sua “Centesimus Annus”.

Francisco não inovou. Não é fácil inovar uma doutrina com século e meio.

E que dizer das preocupações com os imigrantes?

Assim de cabeça, lembro-me de três refugiados que tiveram importância maior na narrativa cristã: José, Maria e Jesus. Já ouviu falar deles?

Foi precisamente em nome dessa família que Pio 12, em discurso em 1952, exortou a comunidade cristã a acolher com amor os desvalidos. Francisco, também aqui, permaneceu fiel aos antecessores.

Por último, é inegável que houve uma abertura para a comunidade LGBTQ. Mas essa abertura está já contida na “Carta aos bispos da Igreja Católica sobre o atendimento pastoral das pessoas homossexuais”, elaborada por um tal de Joseph Ratzinger durante o pontificado de João Paulo 2º.

Por outras palavras: Francisco, com as inevitáveis diferenças de estilo que são próprias da individualidade papal, é um continuador. Como explicar o desconhecimento festivo dos seus novos seguidores?

Arrisco uma hipótese: não é apenas desconhecimento. A adesão a Francisco também se explica pela crise de referências que assola a esquerda contemporânea.

É uma crise de referências no sentido mais básico da expressão: faço uma lista mental com os principais nomes teóricos da esquerda e comprovo o definhamento onomástico das últimas décadas. Marx, Lênin, Gramsci, Adorno, Sartre, Foucault –até aqui tudo fácil. Depois daqui tudo difícil.

Haverá um nome incontornável que se lhes compare? Habermas, talvez. Antonio Negri? Thomas Piketty? Zizek?

Não blasfeme. A biblioteca do intelectual de esquerda perdeu brilho e vigor. Só restam sombras.

Mas a crise não é apenas bibliográfica. É cartográfica: onde estão as propostas da esquerda para um projeto mobilizador de sociedade?

O historiador David Swift, ele próprio um homem de esquerda, respondeu à pergunta em “A Left for Itself: Left-Wing Hobbyists and Performative Radicalism“.

A crise financeira de 2008, o mais sério revés do capitalismo internacional, deveria ter sido um maná para a política progressista, escreve o autor.

Não foi. Pelo contrário: foi a direita populista que emergiu triunfante, conquistando o eleitorado tradicional de esquerda (o “proletariado”; ainda lembra dele?).

Essa deserção dos trabalhadores para as águas da direita se explica, segundo David Swift, pela opção identitária da nova esquerda, mais preocupada com a sinalização moralista da sua própria virtude.

“Sujar as mãos” com os problemas reais dos “deploráveis” (para usar essa imortal palavra) deixou de ser uma prioridade.

Para que perder tempo com a economia quando a verdadeira luta é simbólica e cultural?

Como exemplo, David Swift oferece os debates sobre a imigração. Um marxista clássico diria que as vantagens econômicas da imigração irrestrita tendem a beneficiar o capital, enquanto os custos sociais são suportados pelo trabalho.

No mundo da nova esquerda, só há vantagens. E quem disser o contrário é racista e xenófobo.

Moral da história?

A nova esquerda prefere subir no púlpito e transformar a política em sermão.

Essa deriva clerical tinha de acabar numa interpretação abusiva do papa Francisco. Como se a doutrina da Igreja Católica, expurgada dos seus elementos transcendentes, fosse mera propaganda ideológica.

Como diria Talleyrand, é pior que um crime; é um erro. E esse erro diz mais sobre o estado da esquerda atual do que sobre o legado do papa Francisco.


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