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Um grito de socorro abafado – 17/05/2025 – Muniz Sodré

Na adolescência, era bom dançar ao som de “Blue Gardenia”, composta e cantada por Nat King Cole. Ele inscrevia esse nome no melhor do cancioneiro romântico, suavizando o mesmo título de um filme policial (1953), também na boa tradição do thriller americano. Mas a Gardênia Azul que batiza uma comunidade na zona oeste do Rio de Janeiro reitera o alerta nacional para o descontrole territorial. Ali, o Comando Vermelho desbancou a milícia e passou a taxar o comércio, em alguns casos a R$ 10 mil por mês, além de obrigar restaurante a fornecer 70 quentinhas diárias para os traficantes. Na verdade, tráfico e milícia desbancam o Estado.

Cerca de 800 comunidades podem fazer relatos semelhantes. No mesmo dia em que a imprensa escrita noticiava a situação da Gardênia Azul, uma reportagem televisiva falava dos condôminos de um edifício em Madureira, zona norte, convocados a uma assembleia geral extraordinária para discutir o pagamento mensal de R$ 1.800 ao tráfico da região. Essa é a realidade das classes mais pobres no território carioca. Comunidade deveria ser o lugar onde se pode gritar por socorro e ser ouvido, mas aqui são as próprias comunidades que gritam. Milhões de pessoas vivem sem o direito elementar de ir e vir.

Os megaeventos, destinados a projetar uma imagem favorável da cidade para o mundo e reinjetar dinheiro na economia, tentam camuflar essa realidade opressiva. É a lógica que leva estado e município a gastarem juntos R$ 30 milhões do custo total de R$ 90 milhões com o show de Lady Gaga. O evento deixou memória positiva: impacto econômico de R$ 600 milhões, mínimas ocorrências policiais. Mas é forte a impressão de que tudo isso abafe o grito de socorro da parte da população que vive sob ditadura férrea de delinquentes, ao lado da outra imersa no negacionismo do não querer saber.

A ressonância internacional do vexame comprova-se na vinda de uma delegação dos EUA para discutir o combate ao Comando Vermelho, que já se espalha por várias cidades americanas. Quanto ao megaevento, vantajoso a empresários e políticos, é um plus anestésico num público que, em matéria de solidariedade social ou afetiva, beira a apatia. A quem assiste como coisa mais interessante de suas vidas o show bem policiado de Lady Gaga, pouco importa saber se outra parte da cidade com o mesmo anseio estará ausente por medo de deslocar-se de onde vive.

Embora a paisagem humana carioca pareça ser a mais afetada por essa calamidade cívica, o problema é de toda a nação. Inconcebível que o Estado nacional, mesmo regido por velhas elites predatórias, se mostre tão vulnerável aos sinais de sua derrocada. Divaga-se, certo, sobre retomada de territórios, mas com uma perspectiva apenas policial, enxuga-gelo, que mais prejudica a população dos espaços onde as quadrilhas se instalaram. Com frequência, as operações de “neutralização” de chefões do crime não são mais do que atos de vingança ou retaliação corporativa, com danos colaterais para moradores indefesos. É que, assim como já não se distingue narcotráfico de milícia, talvez não se saiba mais fazer a diferença entre lei e ilegalismo, Estado e banditismo.


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