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A medicina brasileira na UTI – 26/04/2025 – Nicolás José Isola

O Brasil enfrenta uma crise silenciosa e crescente que ameaça toda a estrutura da medicina nacional: a proliferação descontrolada de faculdades de medicina de baixa qualidade. Em vez de solucionar a carência de médicos, estamos multiplicando profissionais mal formados, aumentando os riscos para pacientes, hospitais e operadoras de saúde. O paciente acaba sendo a vítima.

Hoje, o Brasil possui mais de 390 faculdades de medicina — o maior número do mundo. Superamos a Índia e a China, países muito mais populosos, e triplicamos o número existente nos Estados Unidos, que têm quase o dobro da nossa população. Essa expansão desenfreada foi guiada muito mais por interesses econômicos do que pela necessidade real de melhorar o sistema de saúde.

O resultado está nos dados. Segundo o Ministério da Educação (MEC), mais da metade dos cursos de medicina avaliados têm desempenho insatisfatório no Conceito Preliminar de Curso (CPC). Muitos funcionam sem hospital-escola, com infraestrutura precária e docentes despreparados. Médicos estão sendo formados em condições incompatíveis com a responsabilidade que a profissão exige.

Como se não bastasse, mais de 50 mil brasileiros estudam medicina atualmente no exterior, em países como Paraguai, Bolívia, Argentina e Cuba — muitos em universidades sem critérios rigorosos de seleção ou formação. Após concluir o curso, buscam revalidar seus diplomas no Brasil, agravando ainda mais o quadro de profissionais sem a qualificação adequada.

Diante desse cenário, foi proposta a criação de um Exame Nacional de Proficiência Médica, uma espécie de “OAB da Medicina”, para impedir que a má formação colocasse em risco a população. Porém, a medida encontra forte resistência no Congresso: o projeto está travado no Senado, após sucessivos adiamentos, sob a alegação de que já existem mecanismos de avaliação e falta clareza sobre a execução do exame. Na prática, interesses políticos continuam adiando soluções urgentes.

Essa deterioração afeta a medicina como um todo, pública e privada. Inicialmente, muitos gestores de saúde — públicos e de hospitais privados — viam o excesso de novos médicos como uma vantagem: maior oferta de profissionais, salários mais baixos. Hoje, a realidade mostra o oposto: médicos mal formados geram aumento de custos, devido a diagnósticos errados, tratamentos inadequados, judicialização crescente, retrabalho e complicações evitáveis. A mão de obra barata se transformou em prejuízo operacional e em risco para pacientes.

Diante dessa crise, é urgente que o governo federal e as entidades médicas definam critérios rigorosos para a abertura e o funcionamento das faculdades de medicina, fiscalizando de perto aquelas já existentes. Mais do que um exame obrigatório ao final da formação, precisamos garantir qualidade desde o início: infraestrutura mínima, docentes qualificados e hospitais-escola realmente preparados para a prática clínica.

Outra estratégia necessária é a criação de um programa nacional de residência médica, ampliando as vagas com critérios exigentes e monitoramento contínuo da qualidade. Não basta multiplicar médicos; é preciso especializá-los adequadamente, garantindo que estejam aptos a oferecer assistência segura e eficaz à população.

Por fim, gestores da saúde pública e privada precisam abandonar a lógica imediatista de barateamento da mão de obra médica. Médicos mal preparados representam um custo alto demais para pacientes e instituições. Valorizar a qualidade profissional, investir em formação continuada e recompensar boas práticas médicas são ações estratégicas indispensáveis. Caso contrário, o preço será pago não apenas em dinheiro, mas em vidas humanas. Afinal, medicina não é commodity; é responsabilidade.

Enquanto isso, a ameaça da tecnologia se aproxima. Como alertou Bill Gates, a inteligência artificial será capaz, em poucos anos, de diagnosticar e tratar melhor que muitos médicos humanos. A combinação entre médicos despreparados e algoritmos cada vez mais eficientes pavimenta o caminho para a substituição inevitável: menos espaço para o médico comum, mais espaço para plataformas automatizadas.

A formação de médicos ruins não é um problema do futuro — é uma tragédia em curso. Não é a inteligência artificial que ameaça a medicina brasileira. É a nossa própria mediocridade.


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