Somos em geral mais modestos, menos carregados de pretensões grandiloquentes. Talvez por uma ideia que li há pouco e não me lembro quem formulou, e faz sentido que não me lembre: a visão de que cada um de nós é apenas uma fração da humanidade, uma fração que vai se tornando menor à medida que a humanidade se expande. Somos a cada dia menores, mais prescindíveis, mais insignificantes. Como poderíamos nos pôr a pensar seriamente sobre a imortalidade?
E, no entanto, por que nos aflige a nossa morte, para além da possível dor de um corpo a perecer? Borges vai parar então no justo estranhamento de Lucrécio: “Vocês se afligem porque vai lhes faltar todo o futuro; pensem, no entanto, que antes de vocês há um tempo infinito”. Se o tempo é infinito como o concebemos, a cada momento estamos no centro do tempo, e assim vivendo um tipo passageiro de eternidade. Se não lamentamos não termos existido um milênio antes de nascermos, um século antes de nascermos, um dia antes de nascermos, por que lamentaríamos não existir no dia seguinte à nossa morte? Mas o caso é que lamentamos. Algo se dá no ofício diário de vida: cria-se com ela um desejo inelutável de viver, uma vontade, uma força, um ímpeto vital, tal como o chamam Schopenhauer, Shaw, Bergson, respectivamente.
O que Borges se põe a defender, e é a ideia mais bonita de seu texto, é que esse desejo de viver pode prescindir de uma imortalidade pessoal. Não é preciso conceber a imortalidade de uma maneira individual, exclusiva, intransferível. São muitas as formas possíveis de vivenciar algum tipo de permanência. “Cada vez que repetimos um verso de Dante ou Shakespeare, somos, de algum modo, aquele instante em que Shakespeare ou Dante criaram o verso.” Vivemos, então, a imortalidade dos outros em nossa voz, em nosso corpo, eis uma maneira heroica e encantadora de conceber a leitura. Shakespeare vive na palavra de Borges que vive na minha palavra que encontra o olhar de quem me lê. Formamos, por um segundo, uma cadeia de seres eternos.
E o argumento avança para diminuir a importância dos nomes que citamos. Há uma infinidade de ideias que lemos e versos que recitamos que não dispõem de nenhuma assinatura. A cultura é uma construção coletiva de uma infinidade de sujeitos a um só tempo imortais e esquecidos. “Cada um de nós é, de algum modo, todos aqueles que morreram antes”, e nada é mais expressivo disso do que a língua que falamos, criação de todos os que nos precederam. A imortalidade não tem por que ser específica e vaidosa, podendo abdicar até da memória. Não é preciso que saibamos os nomes dos tantos seres imortais que vivem em nós, não é preciso que saibam o nosso nome quando passemos a viver nos outros.
Mas retorno ao ponto inicial, à ideia de que já não nos preocupa tanto assim a imortalidade, que já não partilhamos de fato dessa ilusão ou desse sonho. Hoje ninguém mais escreve, produz, inventa com os olhos perdidos na posteridade. Ninguém incompreendido por seus contemporâneos acha de fato que se verá redimido no futuro. Ninguém em sã consciência se crê capaz de uma grandeza que atravesse décadas, como Borges, séculos, como Shakespeare, milênios, como Lucrécio. Se algo assim porventura se der, será sempre um acidente.
O que nos interessa, mais do que nunca, não é o imperscrutável futuro e sim o presente concreto. O que move nossa vontade, nossa força, nosso ímpeto é o diálogo imediato com as pessoas de nossa época. Talvez haja nisso uma acomodação, a aceitação de um destino menor, pouco transcendente. Talvez, porém, haja nisso uma libertação, a proposta de um olhar rasteiro e preciso para o mundo, de um pensamento centrado, agudo, pertinente até o limite. Eis a nossa sina, falar e ouvir aqui e agora, antes que estejamos todos mortos, antes que tenhamos desaparecido de vez.