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Diário de outro conclave – 25/04/2025 – Mario Sergio Conti

Domingo, 17 de abril, 2005. O voo mais em conta de Paris a Roma fazia escala em Amsterdã. Não deu outra: o avião atrasou e uma funcionária me guiou numa louca correria pelo aeroporto de Schipol. Fui o último a embarcar, ufa.

De novo, não deu outra: a esteira de malas se esvaziou e nada da minha, largada na Holanda pela Alitalia. Tudo fechado na tarde chuvosa —e eu só com o laptop e a papelada sobre o conclave

Reservei uma pousada a dez minutos da praça São Pedro. Isso no mapa, porque fica no meio do nada, no topo de uma escarpa. O costume dos nativos é estacionar nas calçadas e andar a pé nas ruas. Um carro espirra água na minha única calça.

Lucia, a exclamativa e amável estalajadeira, torce para que o próximo papa seja italiano, de preferência romano. Consternada, informa que só encontrarei escova de dente numa farmácia do outro lado do Tibre.

Segunda-feira. Acordo sem saber quem sou, num quarto de subsolo, frio e mal iluminado. O capuccino no bar ao pé da colina foi feito por anjos. O croissant besuntado de marmellata não.

Nos jornais, é a hora alta dos vaticanistas. Cheios de empáfia, são comentaristas de futebol em véspera de final. Especulam adoidado, já que é impossível prever a maledicência de 117 mexeriqueiros carcomidos. Oriento-me por Henri Tincq, conclavólogo do Le Monde. Ao menos conhece a história da igreja e não fala em fontes.

Comprar chips italiano para o celular francês (emprestado por uma amiga); discutir com a Alitalia no telefone; tirar a credencial no serviço de imprensa da Santa Sé; entrevistar passantes para falas ao vivo na Rádio Bandeirantes; gravar boletins a cada três horas. Pavese: trabalhar cansa.

Telões na praça transmitem a procissão dos cardeais pelo Vaticano. Com a tarimba de dois milênios de coreografias, mais a sincronia tecnológica, a garbo do show é duplicado. Vê-se o Juízo Final de Michelangelo ao fundo da Capela Sistina e, com um baque abafado, o camerlengo fecha as portas de mogno com chave/conclave.

Fernando [Vieira de Mello] avisa que terei de estar à meia-noite e meia ao lado do Castelo Sant’Angelo para entrar ao vivo no Jornal da Band. Devo me entender com um gajo chamado Çuma Kaya. Ando uma hora e, chegando ao Tibre, há uns 40 caminhões. Piove, governo ladro!

Minutos antes do [Fernando] Mitre ligar, encontro Çuma: miracolo de San Gennaro! Foi botar o ponto na orelha e [Carlos] Nascimento perguntou quem tinha chance de ser papa. Sem invocar o santo nome de Henri Tincq, informei ao distinto público que os mais falados eram o camerlengo, Eduardo Somalo, e o decano, Joseph Ratzinger.

Terça-feira. Lucia acordou-me com um brado de alegria: “Signor Conti, suo bagaglio è arrivato! Grazie a Dio!”. Ao sair do hotel, perguntei-lhe se estava apresentável. “Moltissimo, signor Conti!”

Asmodeu deu as caras: esperava ficar uma semana em Roma e, logo no segundo dia, habemus papam. Passaram-se 15 minutos entre a fumaça branca e Ratzinger surgir na sacada. Foi o que bastou para milhares de pessoas brotarem de lojas, escritórios, metrôs, ônibus, escolas, catacumbas. O bispo de Roma vale mais que o papa.

Papo com Çuma e seu comparsa, Murad, ambos turcos. Com um caminhão e uma parabólica, percorrem a Europa atrás de notícias para vender minutos de transmissão a emissoras pobrinhas. Deram-me chá de garrafa térmica em copo de plástico e vibraram quando perguntei se, como seu compatriota Ali Agca com o papa polaco, iriam rechear Ratzinger com azeitonas: “Good idea!”.

Quarta-feira. A manchete do il manifesto é genial: “Il pastore tedesco”, o pastor alemão. As ovelhas do Vaticano se lascaram. O jornal deve vender mais que L’Oservattore Romano, que todo mundo guarda de lembrança. O PCI morreu há 15 anos, mas o manifesto, dissidente desde 1969, segue firme, forte e anticlerical.

Com o trabalho terminado, fui à Basílica e topei com d. Eugênio Salles. Sugeri vermos as coisas barrocas, mas o cardeal quis ir à cripta. O esteta se submeteu ao crente, e à cripta fomos. Revi Bernini sozinho. Dessa vez, encantei-me com o monumento a Alexandre 7º, no qual o esqueleto da Morte brande a ampulheta do tempo.

Quinta-feira. Lucia beijou-me na despedida e jurei amor eterno.

Segunda-feira, 21 de abril, 2025. Francisco pediu para ser sepultado sem escultura nem mausoléu na Basílica de Santa Maria Maggiore. É assim que lá está enterrado também, sob uma lápide circunspecta, o grande artista que serviu a sete papas, Gian Lorenzo Bernini.


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